"Não existe corrente forte com elos fracos"

domingo, 11 de março de 2012

Serra Pelada: um sonho, sete brasileiros

Quatro garimpeiros, um major da ditadura, um policial e uma dona de bordel contam os 25 anos de glória e decadência da Serra Pelada, o maior garimpo a céu aberto do mundo

Leandro Narloch | 01/07/2005 00h00

Barracos de tábua apodrecendo no meio da mata fechada, a única estrada de terra vermelha abandonada, um lago de 100 metros de profundidade onde uma ou outra criança toma banho à tarde. Assim é a Serra Pelada de hoje, um retrato que lembra a velha fazenda Três Barras, o nome daquele pedaço de chão há 25 anos, antes da invasão dos garimpeiros. Na época, o solitário lugar era só mais um entre as dezenas de garimpos da região. Havia então 100 mil homens caçando a sorte nos rios da bacia amazônica. No início de 1980, no entanto, um boato mudou o panorama. Circulou entre as bateias a notícia de que ouro, ouro mesmo, quilos e até toneladas do precioso metal, encontrava-se ali, no córrego estreito ao pé do morro da tal fazenda Três Barras, a 150 quilômetros de Marabá, sul do Pará. Começou aí a se desenhar o cenário que ficaria famoso no mundo inteiro. Em dois anos, o riacho tornou-se um buraco do tamanho do estádio do Maracanã, com 100 metros de profundidade. Com o nome emprestado de uma serra vizinha que não tinha árvores, a Serra Pelada se transformaria no maior garimpo a céu aberto do mundo, de onde saíram oficialmente 30 toneladas de ouro.

Um dos primeiros a aterrissar na afortunada fazenda foi José Raimundo da Silva, na época com 23 anos de idade e oito de garimpo. Desde os 15 anos, ele chafurdava no rio Tapajós, sem nunca ter visto a cor do ouro. “A gente ficava tanto tempo no meio do mato que quando chegávamos numa vila nos olhavam como selvagens”, diz. Quando ouviu os boatos sobre a Três Barras, não teve dúvidas: botou a bateia debaixo do braço e partiu. Na chamada Grota Rica, no pé da serra, deu de cara com a sorte. Como anunciava a boataria, o ouro brotava mesmo no fundo do córrego e nas margens, retalhada em “barrancos”.

José Raimundo estava no lugar certo, na hora certa. Presenciou o momento exato em que, em abril de 80, a Serra Pelada explodiu. “Um dia, o Odorico, um meia-praça [assistente que ganhava por comissão], resolveu pegar a picareta e esburacar o alto do morro. Voltou com uma pepita de quatro quilos na mão”, lembra. “Isso era meio-dia. Às seis da tarde, o morro estava todo desmatado e dividido em barrancos de dois por dois metros.”

Escolher um pedaço da Serra Pelada era pura aposta. O sujeito poderia pegar um barranco onde havia só lama ou tornar-se milionário com um terreno repleto de ouro a poucos metros de profundidade. José Raimundo encaixou-se no segundo caso. Ele adquiriu justamente o barranco mais premiado da história do garimpo. Tirou de seus quatro metros quadrados 2 200 quilos de ouro, o que lhe rendeu 162 milhões de cruzeiros, hoje 18 milhões de reais. Tornou-se, em seis meses, Zé Maria, um dos homens que mais “bamburraram” –, que mais encontraram ouro na Serra Pelada. “Eram 200, 300 quilos de ouro toda a semana. A polícia fazia um cordão de isolamento no meu barranco para o pessoal não avançar”, diz Zé Maria, que hoje tem um hotel em Marabá, 3 mil cabeças de gado, uma Toyota na garagem e um rolex no punho. “Já tive que cortar barras com o machado, porque não cabia no saco.”

Tráfego aéreo

Quem topava com o ouro em abundância, passava dias e noites na labuta – sem parar. Depois que o metal estava lavado e pesado, vendia a “colheita” para o posto local da Caixa Econômica Federal. E, quando a fonte secava, o passo mais comum era pegar um avião e partir para Marabá ou Imperatriz, no Maranhão, origem da maioria dos garimpeiros. Havia cerca de 30 viagens de monomotores diárias – na época, o movimento de táxi aéreo superava o do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Para conseguir pegar um vôo, esperava-se até duas horas na fila. Só que Zé Maria não precisou nem enfrentar o tumultuado check-in. Com um saco cheio de notas de 1000 cruzeiros, ele fretou um avião sozinho. Em setembro de 1980, o milionário deixou a Serra Pelada e só voltou 12 anos depois. A notícia de que um josé-qualquer de 23 anos ficara rico de uma hora para outra percorreu o Brasil. No fim de 1980, o morro ao lado da Grota Rica em que Zé Maria garimpava tinha se transformado em planície, carcomido por 30 mil homens.

Além de organizar os vôos que partiam da Serra Pelada, os “fedecas”, como eram chamados os agentes da Polícia Federal, controlavam todos os passos do garimpo. Para trabalhar ou mesmo entrar nos 100 hectares da jazida, havia barreiras só transponíveis com autorização. Armados, os policiais vigiavam os caçadores de ouro dia e noite. Jogos, bebidas, armas e até mulheres eram proibidos. Algumas moças metiam-se no mato para escapar da vigilância e chegar ao garimpo. Oficialmente, elas só puderam entrar ali a partir de 1986. O governo também controlava o preço do ouro. Depois que o metal era lavado e separado do cascalho por britadeiras, só podia ser vendido para o posto local da Caixa, que chegou a pagar menos de 60% do valor real. O responsável por tamanha disciplina foi o interventor federal que chegou à Serra Pelada em maio de 1980: Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, amigo de João Baptista Figueiredo. O presidente entrava no segundo ano de um mandato sem as alegrias do milagre econômico e com uma inflação de 110% ao ano. A Serra Pelada virou símbolo de esperança para os excluídos. A única preocupação era não deixar o lugar tornar-se um território sem lei. Essa era a missão de Curió, que fizera fama dez anos antes exterminando a Guerrilha do Araguaia, na fronteira do atual Tocantins com o Pará e fora agente do Serviço Nacional de Informações (SNI). “Com a intervenção, o garimpo passou a funcionar por concessão federal”, diz ele.

Linha dura

Com disciplina militar, o homem de João Figueiredo botou ordem na casa. E também arrumou diversão para a turma. A primeira medida foi instalar um cinema. A programação não poderia ser mais adequada para uma terra exclusiva de machos. O clássico pornô Garganta Profunda, por exemplo, era atração recorrente. O major também resolveu o problema de moradia. “Em 1981, negociamos com os fazendeiros as terras na margem da rodovia PA-175 para abrigar as barracas do pessoal que chegava”, conta. A vila ao longo da estrada virou Curionópolis – uma clara auto-homenagem, diga-se. Apesar de ser assassino confesso de uma jovem de 17 anos, em 1992, e principal suspeito de ter mandado matar, em 2002, Clênio Cunha Lemos, presidente do Sindicato dos Garimpeiros de Serra Pelada, Curió mantém a simpatia na região até hoje. É prefeito da cidade que leva seu apelido. A boa relação não é obra do acaso. Curió peitou o inimigo dos garimpeiros: a Companhia Vale do Rio Doce (CRVD), que tinha direito de lavra sobre a Serra Pelada. “Foram 76 ações na justiça comum e 16 na federal”, diz. Curió aproveitou sua posição de porta-voz de 100 mil pessoas para iniciar sua carreira política. Eleito deputado federal, conseguiu a aprovação da cessão dos direitos de exploração da Serra Pelada aos garimpeiros por cinco anos. Em troca, a Companhia Vale do Rio Doce recebeu indenização de 59 milhões de dólares.

Enquanto o major Curió cuidava dos interesses dos garimpeiros em Brasília, o ouro continuava a jorrar na Serra Pelada. Em setembro de 1983, Lindolfo de Brito achou a maior pepita já registrada no Brasil, com 62,3 quilos. O lugar fervilhava. Tinha emprego para todo mundo. Quem não era dono de barranco, militava, por exemplo, como saqueiro. Ou seja, sujeitos que levavam os sacos de ouro para a lavagem. Outro posto era o de apurador, que controlava o número de sacos que iam e vinham das áreas de exploração. Os diaristas ganhavam um salário fixo, os meia-praças, o salário mais uma comissão. Todos obedeciam as ordens dos donos dos barrancos. A essa altura, caçar ouro na Serra Pelada tinha virado profissão-perigo. Como não havia mais ouro na superfície, os garimpeiros cavavam um buraco, que era drenado todos os dias. Em julho de 1983, 19 pessoas morreram em um deslizamento de terra. Para levar o minério até o riacho onde era lavado, os garimpeiros subiam e desciam escadas moldadas no barro ou improvisadas com madeiras. Cada saca pesava 35 quilos: em um dia, um saqueiro carregava 1,7 tonelada de barro.

Como ninguém ali – apesar das aparências –, era de ferro, o Trinta servia como centro de diversão. Fincado no km 30 da rodovia PA-175, o lugarejo pegava fogo todas as noites. “Nunca mais vai ter no mundo um povoado como o Trinta”, diz Maria Augusta de Oliveira, a dona Marilda, hoje com 60 anos. Não é difícil entender porque dona Marilda tem tanta saudade. Imagine a cena: centenas de garimpeiros andando felizes como se tivessem ganhado na loteria, ruas de terra engarrafadas com Caravans e Passats novinhos, dois cinemas e 40 bordéis para receber os bamburrados. No meio dessa festa, dona Marilda comandava a “Dragão de Ouro”, a boate mais badalada do Trinta e de toda a Amazônia. “Era uma festa que não parava nunca”, diz ela. “Os homens chegavam com os pacotes de dinheiro e jogavam em cima do balcão para eu guardar. De manhã, tinham gastado tudo, e eu emprestava algum para eles voltarem para a Serra.”

A “casa” de dona Marilda tinha 30 quartos e um salão com jogos de luzes. Nos bons tempos, ela cuspia dinheiro. Em uma ocasião, bateu um carro novinho em folha num poste, mas resolveu não levar para consertar. Demoraria muito. Voltou à concessionária e comprou outro igual. “Naquela época, a gente destruía bem”, diz. Hoje, a cafetina de outrora virou dona de um botequim com geladeira velha, baleiro vazio e quase nenhum cliente. Quando recorda a época áurea da Serra Pelada, dona Marilda varre a sujeira para debaixo do tapete. Na Semana Santa de 1982, teve seu marido e outros dois funcionários assassinados. Coisa que ela não comenta. As mortes eram, aliás, cotidianas. Como o major Curió não permitia armas na área da jazida, o Trinta funcionava também como lugar para os acertos de contas. “De dia, era o Trinta. De noite, o 38”, diz o policial José da Luz de Souza. Brigas mal resolvidas no garimpo terminavam em morte. Suspeitas de roubos e disputas por mulher, também. “Eram tantos assassinatos que, toda madrugada, um funcionário passava com uma carroça juntando os corpos. Morriam sete, oito na mesma noite,” conta o policial. “Muita, mas muita gente era morta com faca de cozinha. E por isso começamos a prender quem andava com elas pela rua”, completa. Some-se ao bangue-bangue o clima de loucura total. “Teve garimpeiro preso queimando dinheiro”, lembra José da Luz.

Roda da fortuna

São muitas as histórias de perdulários. Enquanto milhares de miseráveis espremiam-se na cava retirando sacos de lama, alguns sortudos jogavam dinheiro para cima. Entre os novos ricos, houve um que fez um cordão de dinheiro, amarrou nas costas e começou a correr. “Sempre corri atrás de dinheiro, agora ele corre atrás de mim”, gritou pelas ruas do Trinta. E teve também o homem que comprou 100 passagens de um Boeing 737 porque queria chegar no Rio de Janeiro sem demora. Seu nome: José Mariano dos Santos, o Índio. Tudo começou com um show do Cauby Peixoto, em Belém. Depois de garimpar 1183 quilos de ouro, Índio resolveu passar uns dias na capital para ver o cantor. Mas ficou todo o show de olho na assistente do Cauby, a Terezinha. Dias depois, Índio tomou uma decisão. Buscaria sua Terezinha no Rio. “Na agência de viagem, a moça não quis me atender porque eu estava de havaianas e shorts”, diz. O diálogo que se seguiu merece destaque: “Me vê de uma vez uma passagem para o Rio”, falou grosso. “Para o Rio só daqui a dois dias”, sorriu a moça. “Mas o que é que preciso fazer para ir agora?”, perguntou. “Alugar um avião”, ironizou a atendente. Índio acatou a sugestão. Alugou um Boeing por 45 milhões de cruzeiros (482 mil reais). “Viajei só com o piloto, o co-piloto, a aeromoça e uma caixa de uísque”, lembra. Já no Rio, Índio passou dois meses de luxúria, vivendo com a amada no Copacabana Palace.

Na volta para Belém, comprou treze casas, onze carros (“Tinha Passat, Diplomata, e aquele... Monza!”), além de doze barrancos na Serra Pelada. “E uísque, muito uísque”, ressalta. Meses depois, Índio trocaria o uísque pela cachaça fiada. Como a maioria dos bamburrados que investiram seu lucro no próprio garimpo, perdeu tudo quando o ouro rareou e a Vale do Rio Doce voltou a requerer o direito de lavra. Pobre, Índio virou um bêbado, personagem clássico daquela gangorra da fortuna. Hoje, está curado. Sobrevive com a aposentadoria de 560 reais da esposa, e a sua casa é tão arrumada que mal se percebe as caixas de papelão que servem como uma das paredes. Também está estudando: “Ainda quero me formar advogado para processar a Vale do Rio Doce”.

Massacre

O ódio pela Vale do Rio Doce tem explicação: todos os anos a companhia fechava a jazida, com ordem judicial. Por diversas vezes, a CRVD interditou a cava para tentar trocar a extração manual pela mecânica. Mas os garimpeiros voltavam e invadiam a área. O garimpo, cada vez menos lucrativo para os cofres públicos, foi sendo abandonado pelo governo, transformando-se em problema social. Contra o descaso das autoridades, 4 mil trabalhadores fecharam, em dezembro de 1987, a ponte da PA-150 sobre o Rio Tocantins, a dez quilômetros de Marabá. Os manifestantes pediam caminhões, tratores e a remoção de 8 milhões de metros cúbicos de terra que estava impedindo a garimpagem segura na Serra Pelada. Entre os revoltosos estava José Costa do Nascimento, o Zé Nildo. Na época, ele tinha 16 anos e participou do protesto contra a vontade do pai. Acabou sobrevivendo a um dos maiores massacres cometidos pela polícia no Brasil. “Fazia três dias que estávamos ali. Quando peguei a bóia, o pessoal gritou para todo mundo subir na ponte porque a polícia estava vindo,” lembra. Zé Nildo correu, enquanto 400 policiais disparavam fuzis e metralhadoras, além de bombas de gás lacrimogêneo. A ponte tinha sido fechada dos dois lados. “As pessoas iam caindo ou se atirando da ponte. Vi uma mulher grávida levar um tiro na barriga e cair no rio”, diz. “A polícia recuou de um lado e a multidão conseguiu correr para um terreno baldio. O cara que corria do meu lado levou um tiro na orelha. Fiquei desesperado.”

Horas depois, a Polícia Militar do Pará informou que desbloqueara a ponte e causara a morte de quatro garimpeiros. Passados dois dias, a Polícia Federal anunciou o desaparecimento de 79 pessoas. Os garimpeiros que sobreviveram ao massacre voltaram naquela mesma madrugada à Serra Pelada, que nunca mais traria grandes alegrias. Em 1992, durante o governo Collor, o domínio sobre a área foi transferido para a Vale, que passou a destruir casas com tratores e a fechar buracos de garimpos ao redor da cava. “Eu havia investido todo o meu dinheiro no garimpo. Já tinha ensacado a lama, só faltava separar o ouro, mas daí o garimpo fechou e eu nunca mais pude entrar na cava”, diz o garimpeiro Francisco Osório Nery, o Chico Osório. “Muitos de nós ficaram quase oito meses presos por formação de quadrilha na tentativa de conter a Vale.” Em 2002, o decreto de Collor caiu, mas a cava já tinha se tornado um lago onde muitas crianças hoje tomam banho.

Em volta do enorme buraco, existe um povoado de 6 mil moradores, que já foi campeão mundial em casos de hanseníase e está no topo do ranking brasileiro de aids e tuberculose. Debaixo de tanta miséria, no entanto, descansam mais de 280 toneladas de ouro, além de reservas de paládio, platina e cobre, quantidade 10 vezes maior que a retirada hoje no Brasil inteiro a cada ano. No último mês de março, o governo finalmente decidiu quem tem direito de exploração da área: venceram os garimpeiros. Este mês, todos os que fizeram parte daquele formigueiro humano há 25 anos podem se inscrever para participar do racha da fortuna ali escondida. “Ainda vou tirar mil quilos de ouro daqui”, diz Chico Osório, que foi um dos mais sortudos garimpeiros da Serra. Desenterrou mais de 600 quilos de ouro em março de 82. “O sonho da Serra Pelada ainda não acabou.”

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